Sabadão à noite fiz uma sessão de cinema aqui em casa com meus grandes amigos Marco e Vladimir (que só ficam prometendo visitar o blog, mas nunca têm tempo...) para rever Encarnação do Demônio, filme que encerra a trilogia do Zé do Caixão. Só então me dei conta que, por mais que eu tenha conversado e dado palpites sobre o filme, nunca escrevi formalmente a respeito dele. O assunto já está caduco à esta altura, mas darei uns breves pitacos para quem ainda quiser discutir a obra.
Foi apenas a segunda vez que vi o filme em sua forma definitiva, com pouco mais de 90 minutos. A primeira foi no cinema aqui da minha cidade, sala praticamente vazia, eu e minha namorada e um sujeito perdido lá nas primeiras fileiras. Antes assisti a dois workprints na produtora Olhos de Cão, sendo o primeiro com excruciantes duas horas de duração e o segundo com cerca de 105 minutos, e uma versão quase definitiva, com trilha sonora provisória que ajudei a compilar, numa sessão privativa no Cine Sesc, em São Paulo.
Sempre fiz questão de deixar claro que não tenho qualquer interesse em fazer cinema, mas que fazia questão de participar dessa obra histórica, da melhor maneira que eu pudesse contribuir. Terei para sempre as melhores lembranças sobre o processo de criação, execução e finalização desse filme que nasceu cult e que marcará toda uma geração de aficionados pelo horror brasileiro (em especial, pelo cinema de Mojica) com o lema “eu assisti um filme de Zé do Caixão no cinema”.
O filme, vocês sabem, começa com Zé do Caixão sendo libertado de um presídio de segurança máxima depois de passar 40 anos atrás das grades, onde pagou pelas barbaridades que cometeu em À Meia-Noite Levarei Sua Alma (1964) e Esta Noite Encarnarei no Teu Cadáver (1967). Em sua nova morada, no meio de uma favela, Zé volta a procurar pela mulher ideal que lhe dará o filho perfeito. Contando com seu séquito de fiéis discípulos, tendo o corcunda Bruno à frente, o coveiro maldito volta a azarar a mulherada com esperanças de encontrar a escolhida. Entre baforadas de cachimbo, goles de peiote e noites mal dormidas, Zé sofre alucinações com os fantasmas de suas vítimas do passado e começa a contestar a própria sanidade.
Porém, não é só o Além que tem contas a acertar com o assassino com unhas “desse tamanho”: dois irmãos policiais (Jece Valadão e Adriano Stuart, que só contracenam graças às mágicas da edição de Paulo Sacramento) querem ver a caveira de Zé do Caixão e apelam para toda a truculência e brutalidade inerentes à sua posição de “otoridade”. Tem também um padre doido de pedra, do tipo que se autoflagela ouvindo música sacra, filho do médico queimado vivo por Zé no primeiro episódio da trilogia. Polícia e Igreja se unem contra o herege infame.
O filme tem falhas em quase todos os departamentos. O roteiro é apressado em alguns momentos e teve que ser remendado para se adequar à ausência de Jece Valadão, falecido depois de poucos dias de filmagem; as atuações são desiguais, transitando entre discreto, histérico e exagerado, e as cenas chocantes de tortura e mutilação, em sua ânsia pelo realismo extremo, cometem gafes imperdoáveis como o “carrasco” que costura a boca de uma mulher usando luvas cirúrgicas! Porém, é um filme visualmente deslumbrante, repleto de cenas de impacto e cenografia surrealista. Para mim, o que mais salta aos olhos - e é o que realmente importa - é que Encarnação do Demônio é um filme com culhões; cinema corajoso, selvagem, horror físico e metafísico, que não tem medo de colocar um septuagenário Zé do Caixão em luta corporal com seus inimigos, ao mesmo tempo em que propaga sua filosofia bestial e troca carícias com mulheres ideais. Mulheres de todas as raças e formatos, nuas e em quantidade, pois mulheres nunca são demais - e no écran nunca devem estar vestidas.
Cinema impetuoso, ousado, para poucos
O filme foi festejado de maneira praticamente unânime pela crítica - em alguns casos, com certo ar de mea culpa, de gente que cansou de implicar com o “velhinho” Mojica - e colheu troféus alhures, mas foi um absoluto fracasso comercial no mercado doméstico. Azar do zé-povinho, que lota os cineplex de shopping perfumados de pipoca amanteigada, para ver quantos Jogos Mortais os ianques imperialistas fizerem e desdenha com sorrisinho arrogante quando indagado sobre o que tem a dizer de nosso Zé. Diante disso, dá aquela vontade de que o filme fosse mais “nosso”, cinema hermético e auto-suficiente, auto-indulgente e feito para os iniciados, dando uma proverbial banana àqueles que ignoram as peripécias sessentistas de Josefel Zanatas e sua filosofia de botequim. Mais ainda: faz a gente pensar que, entre as cenas não aproveitadas, deve existir material precioso de Zé Celso e Zé Mojica visitando o purgatório dantesco, mais improvisos geniais de Adriano Stuart e muita cena de horror com sacanagem e sacanagem com horror. Cenas estas que quiçá tenham sido sacrificadas em benefício de um filme mais “redondo”.
Encarnação do Demônio não é o filho perfeito de José Mojica Marins, não chega aos pés do imponente, delirante e psicossomático Ritual dos Sádicos (1970), mas é a prova em celulóide que seu sangue tem poder e que seu legado cinemático é perpétuo. Afinal, como filosofa Zé do Caixão lá pelas tantas, “imagens não morrem”!